Ideias para uma nova agenda para as cidades

Fonte: Observatório das Metrópoles

O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) está produzindo um conjunto de artigos visando contribuir com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades, tendo em vista as eleições presidenciais, para os governos dos estados e para o Distrito Federal, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste primeiro artigo, assinado pelas instituições que compõem o FNRU, foi extraído do documento base do Encontro Nacional do FNRU de 2017, e e traz as diretrizes gerais por cidades justas e democráticas.

A Rede INCT Observatório das Metrópoles é uma das apoiadoras do Fórum Nacional de Reforma Urbana e passa a divulgar a série de artigos a fim de debater a urgência de uma nova agenda para as cidades brasileiras.

Diretrizes do FNRU por cidades justas e democráticas

1. O ideário do direito à cidade é um ideário anticapitalista, radicalmente democrático, fundado na justiça social, que por definição não pode ser institucionalizado em sua multidimensionalidade e radicalidade, nem plenamente realizado sob o capitalismo. O direito à cidade pode ser compreendido como um direito coletivo de todas as pessoas ao usufruto equitativo da cidade dentro dos princípios da justiça social e territorial, da sustentabilidade ambiental e da democracia. Nesta dimensão, o direito à cidade envolve a provisão direta de valores de uso adequados para todos – moradia, saneamento ambiental, mobilidade urbana, cultura e lazer, educação, saúde segurança alimentar etc. – que deve ter precedência sobre a provisão desses serviços por intermédio do sistema de mercado, que maximiza os lucros, produz valores de troca concentrado privadamente nas mãos de poucos e distribua bens com base na capacidade de pagamento das pessoas.

Todas as pessoas devem ter o mesmo direito a moradia, educação, saúde, segurança alimentar, lazer, produtos básicos e acesso inclusivo e livre aos transportes de qualidade para garantir a base material que assegure que não haja carências e que promova a liberdade de ação e de movimento. Ao mesmo tempo, o direito à cidade também expressa o direito de recriar a cidade, o direito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde todos e todas possam participar das decisões relativas à forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a vida coletiva na cidade. Recriar a cidade significa recriar a vida, a cidade deve ser um valor de uso coletivo, um bem comum.

Nesse sentido, todas as pessoas devem ter o direito de participar no planejamento e gestão do habitar, para garantir que a utilização dos recursos e a implementação dos projetos urbanos sejam revertidas em benefício da coletividade e dos projetos de cidades, desejadas pelas diversas coletividades, respeitando as diferentes culturas e o meio ambiente nos quais elas se situam.

2. A função social da cidade e da propriedade urbana e a regulação pública do solo urbano implicam na subordinação dos direitos individuais de uso da propriedade aos interesses e direitos coletivos, de forma a garantir o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano. A oposição entre propriedade privada e poder público deve ser progressivamente substituída por regimes de direito comum, em especial no que se refere a terra, mas também ao conhecimento humano, que juntos podem ser considerados os bens comuns mais fundamentais. Nesta perspectiva, devem ser adotadas formas de criação, gestão e proteção baseadas em assembleias e associações populares.

3. Democracia participativa e a gestão democrática da cidade expressam a garantia do controle e 12da participação de todas as pessoas que moram na cidade, através de formas diretas e delegadas, individuais e coletivas, no planejamento e no governo local. Deve ser promovida a convivência social, a equidade de gênero, a igualdade étnico-racial, respeitando todas as pessoas, independentemente de sua etnia, idade, capacidades, gênero, orientação sexual e religião. Da mesma forma, deve ser promovida a maior diversificação possível nos modos de viver e ser, nas relações sociais e com a natureza, nos hábitos culturais e nas crenças dentro das diversas escalas e associações territoriais, comuns e coletivas, sejam no âmbito de comunidades, municípios, regiões, estados ou no país.

4. O manejo sustentável e a responsabilidade sobre os bens comuns naturais, patrimoniais e energéticos da cidade e seu entorno, como a produção e a apropriação de energias naturais e de matérias-primas renováveis e sustentáveis devem prosseguir para atender as necessidades humanas, subordinadas ao máximo ao respeito pelos ecossistemas e com a máxima atenção para com a reciclagem de nutrientes, energia e matéria física em seus locais de origem. Devem ser promovidas ações e políticas de reencantamento da natureza, do qual fazemos parte e com o qual podemos ter uma relação integrada e harmoniosa.

5. A superação da contradição entre capital e o trabalho na produção da cidade e na cidade deve ser substituída por associações de produtores que decidam livremente o que e como produzir em colaboração com outras associações, considerando-se a satisfação das necessidades sociais comuns. Neste sentido, deve-se promover e apoiar a produção social do habitat e o desenvolvimento das atividades econômicas solidárias, incluindo a agricultura urbana para fortalecer a soberania alimentar. O direito de produzir a cidade e um habitat produtivo, incluindo o direito à energia, que gere meios de subsistência para todas e todos, que fortaleça a economia popular e não os lucros das corporações e empresas privadas.

6. A economia deve promover o bem viver e, os bens comuns e não o capital. O mito do crescimento econômico infinito no qual se baseia o capitalismo está diretamente vinculado à reprodução da concentração da riqueza e das desigualdades sociais. Assim, torna-se necessário desconstruir esse mito para a construção de um novo projeto de sociedade, baseado na promoção do máximo desenvolvimento e em revoluções permanentes das capacidades e dos poderes humanos, individuais e coletivos, voltados para o bem-estar de todos, e não para a acumulação exponencial perpétua do capital. Isso também implica na desaceleração da vida cotidiana para maximizar o tempo dedicado às atividades livres, ao lazer e à participação sociopolítica, realizadas em um ambiente prazeroso, mesmo que atravessado por conflitos, onde as pessoas possam, com tolerância conviver, interagir e negociar suas diferenças.

7. A luta contra o poder das corporações e das finanças. O capitalismo contemporâneo é caracterizado pelo crescente poder dos rentistas improdutivos, das formas de capital parasitário, envolvendo não apenas os proprietários de terras, mas os donos dos ativos, os portadores de títulos, os banqueiros donos do poder monetário e os donos de patentes e direitos de propriedade. Mas, diferentemente do que se possa pensar, não existe uma dinâmica financeira capitalista perversa, vinculada ao capital fictício, e outra dinâmica produtiva capitalista benéfica, mas processos interconectados à acumulação de capital global.

Em outras palavras, a subordinação do capitalismo à lógica do capital fictício não deve ser vista a partir da falsa dicotomia entre a finança e a produção, mas da inter-relação entre estas duas dimensões do mundo do capital. O poder corporativo é a expressão maior desta articulação o que justifica pôr no centro da agenda urbana a luta contra o poder corporativo. As grandes corporações combinam poderosas articulações entre grupos de engenharia, grandes empreiteiras, fundos de investimentos e bancos, com uma atuação cada vez mais oligopolizada, com forte impacto sobre as políticas urbanas, na área de habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana.

O poder das corporações tem imposto às cidades grandes projetos de renovação/reestruturação urbana e diferentes mecanismos de transferência do fundo público para o setor privado. Esta luta implica, assim, na adoção de barreiras econômicas, sociais e políticas que impeçam a apropriação do poder social por qualquer forma de capital privado, em especial, pelas corporações privadas.

8. A cidade em uma perspectiva interseccional: gênero, raça, cultura e classe na construção social dos territórios. O ponto de partida é o reconhecimento de que a construção social do espaço e do tempo é atravessada pelas dimensões de gênero, raça, cultura, religião, além da classe. Em outras palavras, o gênero, a raça, a diferenciação cultural, religiosa e política, e a classe nas concepções de espaço e tempo frequentemente se tornam arenas de conflito social.

Os diferentes grupos sociais, mulheres negras, mulheres brancas, homens negros, homens brancos, homossexuais negros, homossexuais brancos, tem diferentes possibilidades de apropriação da cidade. Esta análise se torna importante ao permitir um deslocamento do enfoque centrado apenas no recorte de classe, considerando que outras formas de opressão também contribuem para a segregação socioeconômica e, consequentemente, espacial. Esta é a proposta da abordagem da interseccionalidade, que coloca luz sobre a sobreposição das opressões frutos do racismo, do patriarcalismo, das intolerâncias culturais e religiosas, e das diferenças de classe, que potencializam as situações de vulnerabilidade de alguns grupos sociais, em especial das mulheres negras. Essas diferentes formas de opressão não se manifestam apenas de maneira isolada ou são paralelas umas às outras, mas se entrecruzam, acarretando na despossessão e no estigma de alguns segmentos sociais. Neste sentido, a luta pelo direito à cidade deve ser entendida como uma luta pelo reconhecimento e superação de todas estas opressões.

Fórum Nacional de Reforma Urbana – FNRU

CMP – Central de Movimentos Populares

CONAM – CConfederação Nacional das Associações de Moradores

MLB – Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas

MNLM – Movimento Nacional de Luta por Moradia

UNMP- União Nacional de Moradia Popular

ActionAid

AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros

CDES – Direitos Humanos

CENDHEC

CFESS – Conselho Federal de Serviço Social

FAOC – Fórum da Amazônia Ocidental

FENAE

FISENGE

FNA – Federação Nacional dos Arquitetos

Habitat para Humanidade

Instituto MDT

Instituto Polis

Observatório das Metrópoles

Terra de Direitos

Ameaças ao direito à moradia na MP 700 – Por Paulo Romeiro*

A Medida Provisória 700, que pretende alterar as regras da desapropriação por utilidade pública, está tramitando no Congresso Nacional, e tem como prazo máximo de votação o dia 17 de maio de 2016. Neste artigo para o blog observaSP, o mestre em direito urbanístico Paulo Romeiro mostra que a MP 700 estabelece um regramento para desapropriação de áreas ocupadas por assentamentos informais que representa um retrocesso na proteção do direito à moradia no Brasil e, portanto, uma ameaça ao direito à moradia dos pobres nas cidades.

blog observaSP tem como objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos. Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o observaSP vem monitorando os desdobramentos do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e a implementação da Operação Urbana Consorciada Água Branca.

Em dezembro de 2015, o Governo Federal editou a Medida Provisória 700, que pretende alterar as regras da desapropriação por utilidade pública, que hoje funcionam de acordo com o Decreto Lei 3365/41. A MP tramita em comissão mista do Congresso Nacional, que votará o relatório apresentado pela Deputada Soraya Santos (PMDB-RJ), relatora do processo, e em seguida será submetida ao Congresso Nacional, tendo como prazo máximo de votação o dia 17 de maio.

Confira a página da tramitação da MP.

No âmbito dos trabalhos dessa comissão, foi realizada uma audiência pública no dia 12 de abril para debater a MP 700. Na ocasião, debatedores denunciaram que a proposta desvirtua o instituto da desapropriação e entrega as cidades a interesses privados.

Na medida em que passa para entes privados o poder de desapropriar, a MP abre brecha para que ocorram desapropriações que atendam exclusivamente ao interesse privado. Isso poderá ocorrer, por exemplo, por meio da captura, pela empresa privada, da renda gerada pela valorização dos imóveis desapropriados. Além disso, a MP estabelece um regramento para desapropriação de áreas ocupadas por assentamentos informais que representa um retrocesso na proteção do direito à moradia no Brasil e, portanto, uma ameaça ao direito à moradia dos pobres nas cidades.

A MP ainda representa uma ameaça ao direito à moradia por não reconhecer de forma expressa os direitos decorrentes do exercício da posse, bem como por limitar a necessidade de medidas compensatórias apenas aos imóveis sujeitos à regularização fundiária de acordo com critérios definidos pela Lei Federal 11.977/09, conforme veremos.

Previsto desde o ano 2000 entre os direitos sociais do artigo 6º da Constituição Federal, o direito à moradia se estende a todo e qualquer cidadão brasileiro. Esse direito se consolida em 2001 com a promulgação do Estatuto da Cidade, que traz elementos como o direito à terra urbana e à mordia, definindo como uma das diretrizes gerais da política urbana dos municípios a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda.

A proteção do direito à moradia teve, inclusive, reflexos na elaboração do atual Código Civil brasileiro, promulgado em 2002, que alterou as regras do usucapião para distinguir a posse com fins sociais, estabelecendo regramento diferenciado para os casos de usucapião de imóvel utilizado para fins de moradia (artigo 1240 do Código Civil).

A MP 700 inclui no Decreto Lei 3365/41 o artigo 4-A, que determina, corretamente, que no caso de desapropriação de imóvel ocupado coletivamente o ente expropriante deverá prever, no planejamento da ação de desapropriação, medidas compensatórias. O problema, no entanto, é que o mesmo artigo restringe esse ponto a apenas alguns casos de assentamentos sujeitos à regularização fundiária de interesse social (de acordo com a Lei 11.977/2009), a saber:

  • quando a área estiver ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 anos;
  • imóveis situados em ZEIS; ou
  • áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.

Como medidas compensatórias, a MP 700 define as seguintes possibilidades:

  • realocação de famílias em outra unidade habitacional;
  • indenização de benfeitorias; ou
  • compensação financeira suficiente para assegurar o restabelecimento da família em outro local.

Assim, em grande medida, a proposta da MP dá contornos de legalidade à violação sistemática de direitos constitucionalmente estabelecidos, que vem sendo praticada em processos de desapropriações de áreas ocupadas por população de baixa renda e já foi amplamente denunciada por setores da sociedade civil. Essaspráticas foram claramente evidenciadas no decorrer da implantação das obras da Copa e do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir do ano de 2007, de Norte a Sul do Brasil.

As formas de violação descritas demonstram que a desqualificação dos moradores dessas áreas como sujeitos de direitos parte do pressuposto do não reconhecimento de seus direitos decorrentes da posse, o que abre espaço para todo um tratamento opressivo em processos de remoção por parte dos agentes do Estado, levando-os a aceitar condições que não garantem o direito à moradia adequada em outro local e que acabam por desmantelar suas formas de vida e relacionamentos sociais.

O Estatuto da Cidade, ao estabelecer que a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda devem ser elementos necessários a uma política urbana adequada, reconhece uma das características do nosso processo de urbanização, em que a principal solução habitacional possível de ser adotada pela maioria da população pobre que vive em centros urbanos foi, e continua sendo, a ocupação de assentamentos informais. Isso significa dizer que é responsabilidade do Estado brasileiro a realização de políticas que garantam o exercício pleno do direito à moradia para a população.

A MP 700, no entanto, parece não reconhecer essa condição histórica do nosso processo de urbanização e a responsabilidade do Estado brasileiro na implementação de políticas de regularização fundiária. Além de excluir os moradores de ocupações que não se enquadram no critério estabelecido, não reconhece de forma definitiva os direitos decorrentes do exercício da posse sobre o imóvel, ao prever como uma das possibilidades de compensação a indenização apenas de benfeitorias, mesmo para aqueles que estão em áreas demarcadas como ZEIS ou que ocupam área de forma mansa e pacífica há pelo menos 5 anos e que, portanto, já preenchem os requisitos objetivos para aquisição da propriedade por meio de usucapião.

Importante mencionar que, como resultado da Audiência Pública realizada em 12 de abril, a deputada federal Soraya Santos apresentou, no dia 19, relatório que, apesar de não resolver os problemas do texto original da MP, trazia um avanço com relação à proteção dos direitos dos moradores de imóveis ocupados coletivamente, na medida em que determinava que as medidas compensatórias deveriam ser “efetivadas” antes da imissão na posse pelo expropriante.

No entanto, novo relatório apresentado pela mesma deputada, que seria submetido à votação na Comissão Mista no dia de ontem (26/04), além de não mais trazer esse avanço, coloca que as medidas compensatórias apenas precisam ser “definidas” e não “efetivadas” antes da imissão na posse por parte do expropriante, o que significa um retrocesso em relação ao próprio texto original da MP. Isso porque determina que, para estarem sujeitos às medidas compensatórias, mesmo em imóvel demarcado como ZEIS, ou seja, com manifesto interesse público na regularização fundiária, os ocupantes devem exercer a posse há pelo menos um ano.

Como não determina a necessária inclusão dos moradores desses assentamentos no polo passivo da ação de desapropriação e a necessidade de efetivação das medidas compensatórias antes da imissão na posse pelo expropriante, e como não reconhece expressamente os direitos decorrentes do exercício da posse por qualquer morador de assentamento informal ocupado coletivamente, a MP não traz qualquer garantia de que o processo de realocação de famílias em outra unidade habitacional não viole direitos e signifique verdadeiro retrocesso nas condições de vida de pessoas que estejam nessa situação.

Vale destacar que a Constituição Federal define que tanto a política urbana (art. 182) como a ordem econômica (art. 170) devem ser realizadas com respeito ao princípio da função social da propriedade e da redução das desigualdades sociais.

A Medida Provisória 700/15, por desvirtuar o instituto da desapropriação e não garantir o exercício pleno do direito à moradia aos moradores de assentamentos informais, sujeitos a processos de remoção decorrentes de desapropriações, fere princípios constitucionais estabelecidos e representa grave ameaça de piorar ainda mais as condições de vida de pessoas que já vivem em situação de vulnerabilidade.

Considerando que os processos de desapropriação poderão, se aprovada a MP, ser conduzidos pelo setor privado, fica a seguinte pergunta: se a violação de direitos já ocorre quando o Estado, que é o responsável pela proteção dos direitos de moradores de assentamentos informais, realiza a desapropriação, o que esperar dos processos de desapropriação conduzidos pelo setor privado?

*Paulo Romeiro é mestre em direito urbanístico e ambiental pela PUC-SP, doutorando em direito econômico, financeiro e tributário na Faculdade de Direito da USP, advogado/pesquisador do Instituto Pólis e do LabCidade – FAUUSP.

Depois do EIA-RIMA, o EIV (e o que é isso??)

Jacqueline Custódio

Fonte: Chega de Demolir Porto Alegre

Na última coluna, falei sobre um tal de EIA-RIMA. Agora, vem o EIV, um instrumento muito importante para o planejamento de nossa cidade e que não é utilizado até hoje. E por quê? Cabem, primeiramente, algumas informações sobre o assunto.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) entrou em nossa legislação através do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 2001) e caracteriza-se por um levantamento que aponta os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise de questões como valorização imobiliária, adensamento populacional, ventilação e iluminação, paisagem urbana e patrimônio natural e cultural, entre outros.
Apesar de ser previsto por uma lei de 2001, aqui em Porto Alegre, o EIV só começou a ser discutido em 2008, na época da revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA). Na ocasião, o Fórum das Entidades da Sociedade Civil propôs como um novo artigo do plano diretor, pelo qual a aprovação de projetos e licenciamentos de edificações dependeria de comprovação de não prejudicar a vizinhança.
Já dá para começar a entender o porquê de não ter sido regulamentado até hoje. Sim, pois foi aprovado na Câmara de Vereadores e enviado ao Executivo, que fez alguns vetos, tornando-se a Lei Complementar 695, de 1º de junho de 2012, instituindo o Estudo de Impacto de Vizinhança na Capital. O Art. 14 desta lei dava o prazo de 180 dias para sua entrada em vigor, a contar de sua regulamentação e reestruturação da equipe funcional.
E é onde nos encontramos no momento: passados 3 anos, ainda não houve  a requerida regulamentação. Assim, um instrumento importantíssimo para a construção da cidade, que identificaria impactos urbanísticos, definindo medidas que diminuíssem os considerados negativos, apresentado à população em linguagem acessível, não pode ser exigido dos empreendimentos a serem implantados na cidade.
Sem ele, obras como a proposta pela Multiplan (aliás, sendo investigada pela Policia Federal – Operação Concutare), planejando, para a área das cocheiras do Jockey Club, 18 torres de até 22 andares, serão aprovadas com mais facilidade, inclusive com contrapartidas muito menores do que o imenso impacto negativo de sua construção.
Além disso, através do EIV, a população pode ter acesso à documentação dos projetos propostos, possibilitando uma visão integral dos empreendimentos, podendo participar ativamente da construção da cidade, princípio constitucional de difícil exercício em Porto Alegre, quem diria.
Por essas e por outras, existe muita resistência, por parte de nossa administração pública, em tocar adiante a regulamentação da lei do EIV. Cabe a nós retomarmos essa discussão, cobrando de nossos representantes eleitos sua aplicação e divulgando a existência deste precioso instrumento de participação e controle social na construção de uma cidade sustentável.
Agradecimentos ao ex-conselheiro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CDMUA), Arno Trapp, pelo material disponibilizado sobre o EIV.
* originalmente publicado no Portal Meu Bairro (clique aqui)

IPTU progressivo: a lei sai do papel?

O IPTU Progressivo é um meio de arrecadação tributária visivelmente corretivo do abuso de direitos sobre espaços urbanos.

Jacques Távora Alfonsin

Mídia Ninja

Uma prova indiscutível de descumprimento da função social da propriedade e da posse de um determinado imóvel, é visível naqueles  deixados em estado de visível abandono ou desuso, degradação e até ruina, em grande parte das cidades mais populosas do Brasil.

Esse problema foi enfrentado pela Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, pelo Estatuto da Cidade, procurando acabar com o mau uso do espaço urbano, prejudicando a saúde, a segurança e, não raro, até o sossego da vizinhança próxima dos locais onde ele se encontra, além de agredir a estética urbana e poluir o ambiente, com o acúmulo de lixo e outras inconveniências.

No art. 182, § 4º, II, da Constituição Federal, por exemplo, existe competência aberta aos municípios de instituírem “imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo”. No Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) a possibilidade dessa tributação ser criada pelos municípios está prevista entre os arts. 7º e 8º. Na redação do último, há advertência expressa ao proprietário flagrado nesse descaso: se ele,  depois de cinco anos contados da data em que foi  notificado para pagar o IPTU progressivo, não cumprir a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o seu imóvel, isso dará direito ao município de  desapropriar o bem “com pagamentos em títulos da dívida pública”.

A Carta Maior de 25 de agosto do ano passado informava estarem sendo tomadas as providências tendentes a tirar do papel essas medidas legais, próprias da competência municipal. Segundo a notícia, São Paulo “dará início, nos próximos dias, às notificações de Parcelamento, Edificação e Uso Compulsórios (Peuc) aos proprietários de 150 imóveis e terrenos que estão vazios ou subutilizados no centro expandido de São Paulo”.

Em Porto Alegre, uma lei complementar da década de 90 do século passado (nº 312/1993), promulgada durante a gestão administrativa do então prefeito Tarso Genro, poderia estar obtendo efeito quando menos semelhante ao de São Paulo. Ela dispõe sobre formas de o Poder Público municipal cobrar o cumprimento da função social da propriedade dos imóveis urbanos da cidade, exigindo do seu proprietário, conforme o tamanho da fração de solo por ele titulada, o parcelamento, a edificação ou a utilização do seu bem, conforme determina a Constituição Federal.

Confiado nisso, o Vereador Marcelo Sgarbossa protocolou pedido de informação ao Prefeito no dia 05 de fevereiro passado, no qual solicitava a Secretaria Municipal de Urbanismo (Smurb) apresentasse o produto de estudos técnicos realizados pelo poder executivo municipal no sentido de demarcar as Áreas de Urbanização e Ocupação Prioritária (AUOPs), e identificar os imóveis enquadrados nas definições estabelecidas pela mesma Lei 312/93, bem como o texto dos projetos de lei enviados em atendimento ao que ela dispõe.

Isso não aconteceu até hoje, com evidente prejuízo do quanto o uso do solo urbano em desconformidade com sua função social prossegue sem qualquer tipo de advertência e correção, as receitas públicas estão perdendo com as sanções tributárias aplicáveis nesses casos e, pior, mais atrasada fica a implementação da reforma urbana indispensável às garantias devidas aos direitos humanos fundamentais de moradia do povo pobre da cidade, carente de espaços urbanos presos numa sujeição ilegal.

Ao que se saiba, nem a lei complementar 312/93 sofreu qualquer impugnação judicial nem a Lei Orgânica do Município do Município no capítulo das atribuições do prefeito de Porto Alegre. Com o mérito de a primeira ter sido promulgada ainda antes do Estatuto da Cidade, mantém plena harmonia com ele e está equipada para fazer o mesmo que São Paulo está fazendo agora.

É bem conhecida a antiguidade das discussões em andamento no Congresso Nacional sobre a reforma tributária, ora para desonerar ou onerar mais justamente, conforme o caso, determinada atividade econômica, ora para aprimorar os meios de fiscalização. No caso de Porto Alegre, pelo menos no referente ao imposto predial urbano, a dita reforma nem precisaria da mesma urgência, salvo melhor juízo, se fosse obedecida aquela lei.

O IPTU Progressivo é um meio de arrecadação tributária visivelmente corretivo do mau uso ou do abuso de direitos sobre espaços urbanos necessários às garantias devidas aos direitos humanos fundamentais sociais, particularmente o da moradia. Quem é pobre e mora mal ou não tem teto não pode ser vítima dessa ilegalidade e dessa injustiça.

Bastaria a lembrança do escandaloso déficit que esse direito sofre na maioria das cidades brasileiras, para se concluir quanto a omissão do Poder Executivo de Porto Alegre em dar resposta ao pedido do vereador, desrespeita o interesse difuso em toda a fração de povo credora do cumprimento da função social da propriedade.

Ainda há esperança de não se repetir desta vez, o modo como esse Poder se comportou anteriormente, movendo uma ação direta de inconstitucionalidade contra o estabelecimento de mais de uma dezena de áreas especiais de interesse social (AEIS), reconhecidas por lei. São áreas carentes de regularização fundiária e de serviços públicos essenciais à população ali residente, por sinal representada e participante dos debates realizados pela Câmara Municipal, pelas famílias pobres que a integram, dando conta de suas necessidades, interessadas na promulgação sem veto da mesma lei.

O princípio constitucional da função social da propriedade é um dos  menos respeitados no país, seja pelas/os proprietárias/os de imóveis, seja   pela administração pública, seja pelo Poder Judiciário, raras exceções a parte. Quem sabe a recente iniciativa do município de São Paulo contribua para garantir os efeitos legitimamente esperados dele e seja seguido por outras cidades brasileiras.

Fonte: Carta Maior

De quem é esta cidade? De quem é este lugar?

Pernambuco

Grupo Direitos Urbanos | Recife usa a Lei de Acesso à Informação como ferramenta para debater o impacto de obras privadas e decisões do poder público sobre a cidade

Por Patrícia Cornils

#Ocupe Estelita +1: ato no Cais José Estelita, dia 28 de abril de 2013, para celebrar um ano de atuação do DU contra o projeto Novo Recife.

Em março de 2012, um grupo de pessoas que compareceu a uma audiência pública sobre o projeto Novo Recife – um megaempreendimento para construir 13 torres no Cais José Estelita, uma área que liga a Zona Sul ao Centro histórico da cidade do Recife – decidiu formar uma comunidade no Facebook para debater as intervenções imobiliárias na cidade. Desejavam, eles próprios, se tornar uma força de intervenção, porque consideravam que o projeto teria um impacto negativo sobre a cidade. Elaborado somente de acordo com interesses dos empreendedores, poderia repetir erros de urbanização em uma área vital do Recife, agravando problemas de mobilidadena já congestionada ligação com o bairro de Boa Viagem, isolando ainda mais áreas degradadas, destruindo a identidade histórica do Centro e segregando ainda os usuários populares do bairro de São José.

O grupo se chama Direitos Urbanos | Recife (DU) e chegou, na semana passada, a 10 mil participantes. Por conta do Direitos Urbanos, o debate sobre o espaço urbano do Recife se tornou, de fato, público. É acompanhado por no mínimo dez mil pares de olhos atentos. E é um debate mais amplo do que a discussão sobre um empreendimento específico. O DU discute, na verdade, como, para que e para quem se constrói uma cidade.

Quem quiser saber mais sobre a história do grupo e sobre o que estão fazendo, veja a entrevista de Leonardo Cisneiros, um de seus primeiros participantes, aqui. Vale a pena. O Caixa Preta, no entanto,  é um blog sobre como abrir a caixa preta das informações públicas. Então, vou contar aqui o pedaço da história que tem a ver com isso. Que também é bem bacana, para quem quiser pensar sobre como interferir nas decisões sobre sua própria cidade.

Desde outubro de 2012, ativistas do DU fizeram onze pedidos de acesso à informação, tanto à Prefeitura do Recife quanto ao governo do estado de Pernambuco. Alguns foram respondidos satisfatoriamente, outros não foram respondidos. E em um deles o poder público decidiu que a informação solicitada pelo movimento – sobre impactos na vizinhança de um conjunto de quatro viadutos – era sigilosa.

Funciona!

O primeiro pedido foi para a Secretaria de Controle, Desenvolvimento Urbano e Obras da Prefeitura, e era assim: “Gostaria de ter acesso a uma lista com (1) todos os empreendimentos de impacto aprovadas nesta gestão e (2) as mitigações e condicionantes exigidos de cada um deles.” Ele foi feito no dia 4 de outubro e respondido 59 dias depois (fora do prazo da Lei de Acesso, que é de 20 dias), em 3 de dezembro. As “mitigações” são medidas para atenuar impactos de um empreendimento. E as “condicionantes” são as condições que um empreendedor tem que cumprir para realizar determinada obra. Essas medidas são previstas em lei e precisam ser conhecidas, para que se saiba se são proporcionais aos impactos causados pelas obras, para que se fiscalize seu cumprimento, para que fique transparente o que a cidade está “trocando” por o que.

O grupo queria ter uma ideia do valor das contrapartidas exigidas às empresas pelo impacto de suas obras na cidade e queria, também, enxergar os empreendimentos que haviam sido aprovados pela prefeitura. A tabela que receberam está aqui. Nela, pode-se ver que a Queiroz Galvão assumiu a obrigação de construir uma ciclovia ligando o Parque das Jaqueiras ao Parque das Tamarineiras. Ou que os construtores do Shopping Beira Mar se comprometeram a doar ao município um terreno com 13 mil metros quadrados, no bairro Pina, para a construção de um conjunto habitacional. Ou que em um projeto de supermercado na Rui Barbosa, uma das avenidas mais engarrafadas da cidade, a mitigação é consertar as calçadas. O que, por sinal, já é obrigação do dono do imóvel correspondente.

Este pedido tem dois detalhes importantes. Primeiro, só foi feito porque a prefeitura criou um SIC, um Serviço de Informação ao Cidadão, para receber, pela internet, as solicitações de informação. O SIC está previsto na Lei de Acesso. Mas a maioria dos órgãos públicos ainda não criou um. O segundo detalhe é a reação de Leonardo Cisneiros à resposta: “Pensei ‘pô, vamos ver se essa Lei de Acesso funciona’. Foi algo sem muita esperança, só para testar mesmo, porque eu não esperava nenhuma transparência da parte da gestão passada e até fiquei surpreso quando a resposta chegou (com atraso)”. Moral da história: é melhor fazer o pedido. E se surpreender com o resultado, se for positivo. Ou exigir o cumprimento da lei, se for negativo.

Viadutos estaiados

Mas a Lei de Acesso realmente funciona? O que aconteceu com o terceiro feito pelo Leonardo mostra que a resposta a esta pergunta não depende somente da lei federal mas também das leis que regulamentam, em cada estado e município, a sua aplicação. Em 21 de fevereiro, ele pediu à Secretaria das Cidades do governo de Pernambuco o seguinte: “1. Relatório do Estudos de Circulação para elaboração do projeto básico dos viadutos da Agamenon Magalhães; 2. Simulação de Tráfego para a elaboração do projeto básico dos viadutos da Agamenon Magalhães; 3. Localização das estações de BRT do Corredor Norte-Sul; 4. Estudo técnico ambiental para implementação dos Viadutos da Agamenon Magalhães; 5. Estudo de Impacto de Vizinhança para implementação dos Viadutos da Agamenon Magalhães”.

Pense em uma grande avenida em sua cidade, uma que ligue duas regiões. A Agamenon Magalhães liga a Zona Sul à Zona Norte da cidade e à Olinda, que fica na região metropolitana do Recife. O projeto do governo do estado, de construir um corredor Norte-Sul na cidade, incluía quatro viadutos. Estaiados, como está na moda. Era, diz Leonardo, “uma gambiarra voltada para o transporte motorizado, uma solução de curto prazo, mas caríssima, e que desconsiderava toda uma série de aspectos de uma cidade além da fluidez do carro. Eram um atentado contra o pedestre, contra o ciclista, uma destruição da vitalidade urbana do entorno em nome de uma lógica rodoviária. Isso ficou muito claro em vários bons textos e um grupo de arquitetos e engenheiros conseguiu convencer o governo de que o projeto seria uma cicatriz no meio da cidade”. Os viadutos não foram construídos.  “O governo teve que elaborar uma desculpa técnica para disfarçar o recuo (…) Então apresentaram essa versão de que os estudos de impacto tinham apontado os viadutos como a melhor solução, mas que os transtornos da fase de construção recomendavam o ‘adiamento’ do projeto.”

O que Leonardo queria era avaliar se os estudos realmente apontavam os viadutos com uma boa solução. E o que aconteceu? Ele recebeu, depois de dois recursos, um redondo “não”. A Secretaria das Cidades do Estado de Pernambuco considerou que os estudos de impacto eram uma informação sigilosa. Pode, Arnaldo? A Lei de Acesso não diz que a regra é a publicidade das informações? Diz. Mas estabelece também que o sigilo é possível, como exceção. Afirma que informações que coloquem em risco a segurança da sociedade e do Estado podem ser classificadas como sigilosas. Onde uma informação sobre o impacto da construção de viadutos coloca em risco a segurança da sociedade e do Estado?

Informações estratégicas

A lei que regulamentou a Lei de Acesso à Informação em Pernambuco (14.804/2012) determina que “são imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado, e, portanto, passíveis de classificação, as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam prejudicar ou causar risco a instalações ou áreas de interesse estratégico estadual”. Baseada nisso, a Secretaria das Cidades afirma, na resposta ao pedido de Leonardo, que “mobilidade urbana” é uma área de interesse estratégico. E informa que, além disso, o “Decreto Estadual nº 38.787, de 30/10/2012, proíbe o acesso de informações cuja divulgação prejudicaria ou tenderia a prejudicar a regular atuação de agentes públicos – no presente caso a Secretaria das Cidades na retomada da execução do Projeto quando oportuno”.

A secretaria vai mais longe e se torna, assim, explícita: “nossa intenção foi de evitar que o Estudo de Impacto de Vizinhança venha a se tornar ‘massa de manobra’, uma vez que a utilização de alguns de seus trechos de forma isolada e fora de todo o contexto do extenso relatório podem ser divulgados e publicados ao grande público sem qualquer espécie de critério, principalmente por oportunistas e pessoas sem outro interesse a não ser a sua própria promoção em detrimento ao bem estar e desenvolvimento social”.

Bom. Não há nada na Lei de Acesso nem em nenhum decreto sobre o que é uma informação “massa de manobra”. Fica a cargo do leitor entender – e podem me mandar sugestões sobre como interpretar isso. Fato: não se pode negar informações públicas com argumentos políticos, assim como não se pode ceder informações apenas a aliados. Existe uma lei para garantir o acesso de qualquer cidadão a informações públicas. Se as informações sobre “mobilidade urbana” forem consideradas estratégicas, para justificar a necessidade de sigilo, não se discutirá publicamente mais nenhum projeto de metrô, corredor de ônibus, ponte, viaduto, rua, ciclovia ou calçada nas cidades do país. Não faz nenhum sentido.

Informações proibidas

O Decreto Estadual 38.787/2012, que regulamentou a Lei de Acesso Estadual no âmbito do Poder Executivo de Pernambuco, cria uma categoria de informação que não existe na Lei de Acesso: a informação “proibida”. Antes de ler o parágrafo abaixo, onde reproduzirei o 2 do Artigo 3 do decreto pernambucano, pense o seguinte: a palavra “proibida” não é usada nenhuma vez na Lei de Acesso à Informação. Nenhuma, porque o objetivo da lei é regulamentar um direito – o direito de acesso  – e não o de blindar as informações públicas.

§ 2º É proibido o acesso à informação nas seguintes hipóteses:

I – cuja divulgação constitua quebra de confidencialidade prevista em ato, convênio, contrato ou outro instrumento jurídico congênere;

II – informações cuja divulgação é proibida por qualquer norma jurídica;

III – informações cuja divulgação prejudicaria ou tenderia a prejudicar as relações com outros entes da Federação ou órgãos nacionais e internacionais, ou que tenham sido fornecidas em sigilo por quaisquer desses;

IV – informações cuja divulgação prejudicaria ou tenderia a prejudicar os interesses econômicos e financeiros do Estado;

V – informações cuja divulgação prejudicaria ou tenderia a prejudicar a regular atuação de agentes públicos;

VI – informações privilegiadas do ponto de vista jurídico e econômico, cuja divulgação beneficiaria ou tenderia a beneficiar aquele que a detiver; e

VII – informações comerciais sigilosas cuja divulgação prejudicaria ou tenderia a prejudicar os legítimos interesses de quem as detém.”

Informações ultrassecretas

A prefeitura do Recife vai na mesma direção da blindagem de informações. Cria mecanismos para impedir o acesso a informações públicas. De regulamentar a Lei de Acesso contra os princípios da própria lei. O projeto de lei nº 09/2013, aprovado no dia 16 de maio na Câmara Municipal, disciplina o acesso à informação no município e prevê o sigilo de até 25 anos a informações consideradas pela prefeitura como “ultrassecretas”. Quem redigiu o texto cortou e colou o trecho da Lei de Acesso que prevê a classificação de documentos como “ultrassecretos”. E nem reparou que essa classificação só pode ser feita pelo presidente e pelo vice-presidente da República, por ministros de Estado e autoridades com a mesma prerrogativa, pelos comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e pelos chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior. Que informação produzida por uma prefeitura, ainda que seja a prefeitura da gloriosa cidade do Recife, é da alçada dessas autoridades?

O direito de saber

Voltando ao Direitos Urbanos | Recife. Para Leonardo Cisneiros, a vantagem da Lei de Acesso é que ela permite que o trabalho de fiscalização, de controle da administração pública, seja feito colaborativamente. Que este trabalho seja distribuído, compartilhado, pelos cidadãos. Dez mil pares de olhos, lembra-se? Então, em Recife e em Pernambuco, o que acontece é que a sociedade civil se organiza, se qualifica e solicita informações para realizar uma discussão de qualidade, baseada em dados públicos, sobre o futuro da cidade. E o poder público escolhe a corrente contrária: tenta criar restrições que a Lei de Acesso, a nível nacional, não permitiria sequer imaginar.

Fotos: Marcelo Soares | Direitos Urbanos

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Sobre a autora: Patrícia Cornils é jornalista. Cobriu durante dez anos a área de telecomunicações, no Valor Econômico e outros veículos. Foi criadora da revista ARede, sobre o uso de tecnologias da informação e inclusão social. Atualmente escreve sobre projetos colaborativos na internet, cybercidadania, transparência pública. Foi colaboradora dos livros “Inclusão Digital, com a Palavra a Sociedade” e “Alencastro, o General das Telecomunicações”. Tem 46 anos, mora em São Paulo e é documentarista, eventualmente. Seu documentário “Querida Mãe” recebeu o prêmio de melhor curta-metragem no Festival É Tudo Verdade 2010. Faz parte da comunidade Transparência Hacker e trabalha no projeto Praças Digitais, da prefeitura de São Paulo.

Leia também: “Entrevista sobre o DU e a Lei de Acesso à Informação” no site Direitos Urbanos|Recife.